Crônicas de um Gamer – No Céu Tem Pão e Surra de Cinta
“Tudo é questão de perspectiva.” Já dizia o tal do, como era o nome dele mesmo, o tal do proverbio chinês? Ou seria aquele que visitou o inferno? Dante né? Sem Google aqui fica difícil… Não sei quem é o criador dessa frase, mas sei que ele criou um argumento perfeito para terminar qualquer discussão sem precisar usar uma bomba nuclear. É claro que nada é mais eficiente para terminar uma discussão do que uma bomba nuclear, mas essa tal frase é uma boa opção quando não se quer destruir um mundo de possibilidades. Sempre pensei em frases que pudessem me tirar de uma roubada, frases coringas, para aquelas situações na vida em que você precisa dizer algo, nem que seja apenas para parecer brilhante, ou mesmo para ser lembrado, mas nenhuma das minhas frases brilhantes chegariam aos pés da frase: Tudo é questão de perspectiva.
O poder dessa frase é tão grande que deveria existir uma lei que definisse a mesma como de uso restrito pelas forças armadas. Imagine você pedir um aumento para seu chefe e ele justificar o seu atual salário dizendo que “tudo é questão de perspectiva” e que se você fosse mesmo ganhar o que merecesse muito provavelmente a empresa faliria e você não quer ver a empresa falida não é mesmo!? É claro que você não quer ser o responsável pela falência da empresa, até por que merecer, merecer mesmo, você não merece, mas só pelo fato de seu chefe achar que você merece já deixa claro que você está atingindo seu objetivo, que é fazer com que pensem que você realmente trabalha! Isso dá tanto trabalho que as vezes é melhor trabalhar de verdade. No fim das contas você nem queria um aumento, na verdade só queria mesmo era se certificar de que seu plano estava dando certo e é melhor voltar para o facebook antes de perder alguma novidade. Tudo é questão de perspectiva.
E então, você que leu até aqui, se pergunta: “Onde os games entram nessa loucura?” Eu poderia dizer que é tudo questão de perspectiva, mas muito provavelmente você fecharia a página e voltaria para o trabalho, coisa que nem eu e nem você queremos que aconteça, não é mesmo? A verdade é que eu preciso contar uma história. Não, não estou morrendo. Pensando bem, até estou morrendo sim, tudo é questão de… ESPERA AÍ! Calma, calma. Não fecha a página não. Ok. Eu vou contar essa história e espero que goste dela (nervosinho você hein!?).
Pão e Locadoras de Vídeo Games
Comprar pão era uma das poucas artes que eu dominava! “Crocantes e clarinhos, moça”. E quase sempre eles vinham crocantes e clarinhos! Era um orgulho, algo que eu fazia com amor, aos 8 anos de idade era uma habilidade no mínimo diferente. Não era algo que eu falaria no primeiro dia de aula, naquele constrangedor momento em que os alunos precisam falar nome, idade e o que gosta de fazer. Era algo só meu, tipo, meu orgulho pessoal. A minha família comia o pão que EU comprava, com o dinheiro do meu pai, claro, mas que EU pedia, mesmo sabendo que a moça da padaria tinha que colaborar e escolher direito. Saber de todas essas variáveis só ajudava a manter meu ego afiado, afinal, só podia ser um dom a escolha do pão certo. Um dia, porém, eu e meu irmão, eu com 8 e ele com 7 anos, fomos buscar pão na padaria perto de casa. Cerca de 6 quadras de casa, andando, chutando pedras, rindo enquanto empurrava meu irmão e ele, rindo enquanto me empurrava. Era uma festa, criança sempre está em dia de festa. Chegamos na padaria e tiramos os chinelos na porta de entrada. Não sei onde aprendemos isso, mas não conseguíamos entrar em qualquer ambiente a não ser que estivéssemos com os pés descalços. As pessoas achavam graça e só hoje eu percebo que era pela situação em si e não pela nossa beleza um tanto quanto exótica. Uma pena.
Chegamos na padaria, tiramos os calçados e esperamos a vez. Demorou alguns minutos, a padaria estava cheia, era perto das 18:00hs e sempre que alguém sorria a gente deixava passar na frente. E não é que todo mundo sorria!? Por fim, chegou nossa vez. Era a minha deixa, Crocantes e clarinhos, moça! Fácil, fácil. Já estava pronto pra dizer minha frase quando soube que não tinha mais pão. Uma padaria sem pão!? Tem que ver isso aí! Olhei para meu irmão que riu da minha cara, eu não aguentei e ri também. A gente sempre ria de tudo, criança sempre está em dia de festa. A moça do pão crocante e clarinho explicou que já estava saindo outra fornada, era questão de 40 minutos. Esperaríamos. Nosso pai chegaria logo em casa, ele gostava de pão crocante e clarinho, era esperar e sobreviver ou chegar em casa sem pão e sofrer as consequências. Algumas gargalhadas depois, enfim, a nova fornada estava pronta e fui surpreendido pela moça da padaria. Ela me disse sorrindo: “10 pães crocantes e clarinhos, né?” Meu irmão riu. Eu não. Só conseguir anuir movimentando minha cabeça positivamente enquanto entregava o dinheiro. Ela roubou minha frase! Pegamos o troco, pegamos os pães e saímos.
Logo do outro lado da rua havia uma novidade, uma locadora de vídeo games, recém inaugurada. Era simples, mas brilhava de tanta diversão! Depois da decepção na padaria, nada melhor do que uma partida de vídeo game para aliviar a tensão. Decidimos entrar. Descalços, é claro! Olhamos em volta, um cômodo comum, sem nenhum detalhe que chamasse mais atenção do que as máquinas disponíveis para jogar. Elas eram uma mistura de vídeo game com fliperama, pois tinham controles de Super Nintendo no lugar dos controles de Arcade, mas estavam em um gabinete de Arcade normal, com a tela inclinada e um banquinho para sentarmos.
Escolhemos a máquina do final da sala, paguei e iríamos jogar Super Mario World. Par ou impar para decidir quem seria o player 1 e sentei no canto ouvindo meu irmão rir. Eu seria o fucking player 2! Meu dia estava cada vez pior. Ouvimos a música da tela de abertura do Mario World e escutamos o barulho de um fusca chegando na padaria do outro lado da rua. Meu irmão e eu rimos, era parecido com o fusca do pai. “Coloca pra dois!” Ele tinha colocado pra um jogador! Que dia, que dia! Reset no jogo, de novo a música de abertura e agora sim pra dois! Foi o tempo de ver o mapa inicial e uma sombra apareceu na porta da locadora. Era meu pai, nosso pai. Ninguém riu. Não sabíamos se ele queria jogar ou se estava só de passagem, mas seu olhar fez com que levantássemos na hora! Descalços nos dirigimos para a saída, que era a entrada (tudo é questão de perspectiva), indo de encontro ao nosso pai. Ele disse:
– Entra no carro!
Calçamos os chinelos e eu falei:
– Falta pegar o troco, pai.
O dono da locadora tinha saído para pegar o troco, mas dava pra ler na cara do meu pai que ele não queria o troco. Ele disse:
– Nada de troco, entra no carro!
Entramos no carro, agora sem dúvida sobre o assunto do troco, e fomos conduzidos silenciosamente para casa. Só ouvíamos o barulho do carro. Olhei para o meu irmão e sorri.
Ele não sorriu de volta. Algo estava errado. Conferi o pão e ainda estava crocante e clarinho. Seria o troco que estava quebrando o clima no carro? Chegando em casa meu irmão saiu do carro correndo, muito rápido e fiquei pra trás na minha lentidão corriqueira. Na entrada de casa minha mãe chorava de soluçar. Algo estava errado. Tirei os calçados e entrei em casa. Mais uma conferida rápida na sacola de pão e tudo ok. Lembro de ter entrado no nosso quarto e uma presença se aproximou de mim. Era meu pai, pronto para nos dar uma surra. A partir daí minha memória só se recorda do show de sapateado que eu e meu irmão realizamos naquela noite. Apanhamos, choramos e fomos dormir. Antes de dormir eu ainda lembrei do troco.
Perspectiva Errada
Faz pouco tempo que eu entendi toda a situação e, sim, ela aconteceu mesmo comigo. O troco era o menor dos problemas, mas para mim, pensando como uma criança, era um baita de um problema. O tempo fora de casa também foi algo que influenciou um pouco na quantidade de cintadas que recebemos. Eu e meu irmão jogamos menos de 1 minuto e apanhamos como se tivéssemos sumidos por mais de 1 dia! Na minha cabeça de criança não estava fazendo nada de errado. Esperamos o pão, que não estava pronto e a culpa não era nossa. Nem jogar nós jogamos! Minha mãe não estava chorando por ter ficado sem pão, ela achava que tinham nos sequestrados. Logo eu e meu irmão, sequestrados. Não com aquela tal beleza exótica.
O tempo foi passando e minha mente foi evoluindo. Hoje tenho opinião formada sobre o tipo de games que eu gosto e sobre os que eu não tolero. Me pergunto se algum dia isso mudará. O melhor de tudo é que eu penso que sim. Quem nunca conheceu um senhor que não deixava os filhos jogarem bola no quintal de casa? Esse mesmo senhor hoje joga futebol com o neto no mesmo quintal em que os filhos eram censurados. Com o tempo nos tornamos mais flexíveis, aceitamos situações que antes eram impossíveis. A parte boa é que pretendo jogar os jogos que hoje eu não tolero, os jogos que chegam a me dar raiva. O tempo me tornará uma pessoa melhor, eu sei disso. Não que hoje eu seja ruim ou do lado negro da força, mas é sempre bom saber que a natureza por si só me ajudará a mudar pra melhor. Quando isso acontecer eu quero voltar a rir das pequenas coisas da vida, como fazíamos quando éramos crianças, quero entrar descalço na mercearia do Seu Zé sem me preocupar com o que pensarão de mim. Quero ter uma perspectiva diferente, pois a atual pode sim estar errada. Só o tempo dirá. Ou não, porque, é tudo questão de perspectiva.